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A conveniência matou a cortesia nos jogos online

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Pedro Henrique Lutti Lippe

Do UOL, em São Paulo

19/09/2017 14h23

A conveniência e a facilidade com as quais os jogadores de games online como "League of Legends" e "Overwatch" conseguem tudo o que querem estão tornando essas comunidades insuportáveis. A prova disso está na maneira como o maior RPG online de todos os tempos mudou desde sua estreia, 13 anos atrás.

Voltemos no tempo para o "World of Warcraft" de uma época distante - muito antes do game ser lançado no Brasil. Entre 2004 e 2008, o RPG online ainda era repleto de mistérios, e os jogadores se uniam em verdadeiras comunidades para desvendá-los.

Não era qualquer um que entrava em um calabouço como Scholomance e saía vitorioso. Os jogadores dependiam dos outros habitantes de seus servidores para enfrentar os maiores desafios do game. Era preciso conversar nas grandes cidades, como Ironforge ou Orgrimmar, para encontrar quem quisesse dividir a missão.

Em um mundo assim, quem agia feito um babaca não chegava a lugar algum.

Jogadores que passavam a perna nos outros e roubavam itens, ou que xingavam seus companheiros quando algo dava errado começavam a ser vistos pela comunidade com maus olhos. Eles paravam de conseguir vagas nos grupos. Por outro lado, quem ajudava jogadores inexperientes e tratava os outros com respeito raramente ficava sem convites para aventuras na caixa de mensagens. Como no mundo real, as pessoas tinham reputações dentro de "World of Warcraft".

Nada disso quer dizer que o jogo tinha uma comunidade perfeita, sempre em harmonia. Mas quem tinha um mau comportamento sofria as consequências - e não por causa de um sistema automatizado de punições ou dos Game Masters, mas sim nas mãos dos outros jogadores. Afinal, quem quer jogar com quem é babaca?

League of Legends - Reprodução - Reprodução
É assustadoramente comum ler comentários racistas, machistas e negativos em geral durante partidas de "LoL"
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A diluição dessa função autorreguladora da comunidade começou com a expansão "Wrath of the Lich King". De repente, "WoW" recebeu um sistema que automatizava a busca de grupos para enfrentar calabouços. O jogador marcava que desafio queria enfrentar, e o próprio jogo montava uma equipe completa dentre os aventureiros interessados.

Era conveniente, sim. Mas não permitia mais que os jogadores optassem por evitar aqueles que tinham má reputação.

Com o passar dos anos, o sistema foi expandido para abraçar também raides, os maiores desafios do game. Jogadores de servidores distintos começaram a ser colocados nos mesmos grupos. Até mesmo o recrutamento de membros de uma guilda passou a ser automatizado.

O acesso a todo o conteúdo do game ficou muito mais fácil... mas, talvez, fácil demais. Hoje em dia, você não precisa conversar com ninguém para progredir em "World of Warcraft". Com grupos formados por jogadores de servidores diferentes, é provável que os membros de uma equipe nunca mais se encontrem na vida. Não há mais uma reputação pela qual prezar. E sem repercussões, as pessoas sentem-se livres para agir de maneira tóxica.

Overwatch - Reprodução - Reprodução
Nas filas ranqueadas do "Overwatch", vale tudo pelos famigerados 'pontos competitivos'
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Apesar de gabarem-se de números cada vez maiores de jogadores, os games online de hoje em dia são cada vez menos sociais.

Ninguém precisa construir relacionamentos baseados em cordialidade para conseguir um grupo e jogar uma partida ranqueada em "League of Legends". Basta apertar um botão, e o time está formado - um time com cinco desconhecidos que, sem terem reputações para construir, só têm aquela partida a perder. Acabada a disputa, companheiros de equipe desaparecem no mar de jogadores, junto de todos os xingamentos que foram trocados quando o caçador perdeu aquele Barão.

Em geral, a única arma que os jogadores têm contra esse tipo de comportamento negativo é a ineficaz ferramenta de 'reportar' um caso depois que ele acontece. Se bastasse, a Blizzard não estaria reclamando de como a comunidade tóxica de "Overwatch" atrasa o lançamento de novo conteúdo para o game, e a Riot Games não faria eventos inteiros voltados a ensinar os fãs de "LoL" a jogarem em equipe.

Gamers que com um mero clique entram em um grupo convenientemente perfeito para suas necessidades parecem não valorizar seus companheiros de time como deveriam. Para muitos deles, outros jogadores são apenas ferramentas, que devem ser usadas para vencer aquela série melhor de cinco e subir no ranking.

É óbvio que a conveniência dos jogos modernos tem inúmeras vantagens, e não é a única culpada pela toxicidade que encontramos online. Mas talvez olhar para a maneira como eram construídas as comunidades do "World of Warcraft" da década passada e de seus contemporâneos - com base em relações duradouras entre os jogadores - possa ajudar empresas como Blizzard e Riot Games a encontrarem uma solução para os problemas de hoje em dia.