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HQ sobre instantes finais do Quilombo dos Palmares reflete o Brasil de hoje

Capa da HQ "Angola Janga" - Reprodução
Capa da HQ "Angola Janga" Imagem: Reprodução

Ramon Vitral

Colaboração para o UOL

31/10/2017 04h00

O quadrinista Marcelo D’Salete se lembra da primeira vez que ouviu falar sobre o Quilombo dos Palmares. Foi nos primeiros anos de escola, quando uma amiga de classe chamou atenção para a data: 20 de novembro, dia de Zumbi dos Palmares. Ele não guarda na memória, no entanto, o instante exato no qual teve a ideia de criar o álbum "Angola Janga". Segundo o artista paulistano, foi em algum momento de um curso sobre a história do Brasil focado na população negra, há cerca de 13 anos.

A primeira versão do roteiro da HQ de 432 páginas recém-lançada pela editora Veneta foi escrita dois anos depois, em 2006. A obra, um épico em preto e branco, é focada no Brasil devassado pela escravidão imposta aos africanos, sequestrados de sua terra natal pelas elites da época. São 11 capítulos e um posfácio tratando do embate derradeiro entre o poder colonial e a população do Quilombo dos Palmares. 

Na época, fim do século 17, o local situado na Serra da Barriga, chamado pelas autoridades de então de Mocambo dos Palmares e hoje pertencente ao estado de Alagoas, chegou a abrigar até 20 mil pessoas que haviam escapado de propriedades na região onde eram escravizadas. Os moradores dos vários quilombos (mocambos) que formavam a região a conheciam como Angola Janga, "pequena Angola" na língua banto quimbundo.

"Explorar esse universo pode ser significativo para a realidade atual. Não apenas para conhecer esses fatos, mas também para gerar novas formas de compreender a sociedade hoje”, conta Marcelo D’Salete em entrevista ao UOL.

Um de seus objetivos com a HQ é propor uma nova leitura sobre a luta de grupos negros, populares e indígenas contra um modelo colonial baseado em uma forte hierarquia social. “No Brasil, temos uma subcidadania praticada e reafirmada cotidianamente. O poder permanece na mão de poucos. Isso só é possível a partir de estruturas de poder e discriminação eficientes que permanecem desde o período colonial”, diz o quadrinista.

Trecho da HQ "Angola Janga" - Reprodução - Reprodução
Página da HQ "Angola Janga"
Imagem: Reprodução
"Angola Janga" conta a história do Quilombo dos Palmares pela perspectiva daqueles que o fundaram e construíram. Para isso, o autor se inspirou em fatos e personagens históricos para criar uma narrativa ficcional. Dentre seus protagonistas estão Zumbi e seu aliado Antônio Soares, Ganga Zumba, líder mais antigo de Palmares, e bandeirantes como Domingos Jorge Velho e André Furtado. Em meio a uma tensão crescente, proporcional à expansão do Quilombo, o quadrinho narra a vida de alguns desses personagens e a forma como suas histórias se entrelaçaram. 

Durante o processo de produção, D’Salete esteve em Maceió, para reunir imagens de referência para a paisagem de seu trabalho e também visitar o Parque Memorial Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga. Apesar de ter buscado elementos da realidade, o autor ressalta a importância fundamental da ficção em seu trabalho. “Considero que ela [ficção] é essencial para contar, com a força que espero, uma narrativa como a de Palmares”, diz o artista.

“Os fatos históricos ainda são pouco acessíveis a grande parte da população. Neste sentido, a ficção e os quadrinhos podem tecer pontes interessantes para quem deseja conhecer mais”, afirma D’Salete, lembrando que Cumbe, sua obra anterior, foi distribuída em bibliotecas de São Paulo e indicado para leituras em escolas de Portugal.

Personagem central da história de D’Salete, Antonio Soares, por exemplo, só apareceu uma vez em meio aos documentos históricos encontrados pelo autor, como delator do esconderijo de Zumbi para as autoridades em 1695. Segundo o quadrinista, durante o desenvolvimento da trama ele surgiu como um personagem com potencial para estar presente ao longo da maior parte da HQ. “A história de Palmares é enorme e eu precisava ser conciso ao contá-la. Tentei evitar dados desnecessários e repetitivos. Se pudesse e tivesse mais tempo, ainda acrescentaria mais capítulos, mas penso que o livro já tem uma boa extensão como está”, diz.

O autor buscou ser fiel a representações iconográficas das culturas dos vários povos que habitaram Palmares. Ele recorreu a estudiosos africanos para compreender alguns símbolos e inseri-los na trama em acordo com seus significados e de forma coerente com o roteiro do quadrinho. “O povo tchokwe, do nordeste de Angola, por exemplo, tem um rico universo de desenhos chamados sona. São antigos desenhos feitos na areia, cheios de mensagens e significados”, explica o quadrinista.

A extensão e a temática de Angola Janga fizeram com que D’Salete mudasse algumas de suas técnicas e continuasse a transição do pano de fundo de seus trabalhos iniciada com Cumbe. O livro é feito com caneta nanquim e pincel com nanquim e distancia-se da ambientação urbana de trabalhos como Noite Luz (2008) e Encruzilhada (2011), ambos sobre crianças abandonadas, garotas de programa, ladrões de carro e usuários de droga em metrópoles modernas.

Na avaliação do quadrinista, seu trabalho não deixa de ser uma ode às mais diversas formas de antagonismo ao conservadorismo crescente do presente. “Palmares era um local onde milhares de negros e negras buscavam autonomia sobre suas vidas, fora do sistema colonial. Isso, por si só, já é uma forma de resistência enorme quanto ao poder colonial, escravocrata e genocida”, afirma.

Onze anos após começar a escrever "Angola Janga" e com o livro lançado, D’Salete diz que a produção do quadrinho o transformou de forma definitiva, principalmente a forma como compreende o que chama de “novos mocambos”. “Os remanescentes de quilombos atuais, com suas diferentes origens, ainda resistem e atestam a violência de nossa história. Ainda hoje, essas pessoas estão sistematicamente ameaçadas por fazendeiros, empreendimentos milionários, etc. De certo modo, isso remete à ausência da reforma agrária desde o pós-abolição. Um elemento a mais que agrava brutalmente o desnível social em que vivemos”, diz.