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O homem que é rei de um reino onde não vive ninguém – nem ele mesmo

Rodrigo Casarin

28/06/2017 09h34

O rei Javier Marías.

No final do século 19, o banqueiro Matthew Dowdy Shiell comprou a ilha de Redonda, um pedaço de terra com trinta quilômetros quadrados no Caribe, próximo a Antígua, então parte do Império Britânico, e pediu autorização à rainha Vitória para que pudesse transformar aquele ínfimo e inabitado pedaço do mundo em um reino autônomo. A majestade concordou com a fanfarronice e Matthew se tornou rei de um reino sem plebeu algum.

Ao longo dos anos seguintes, após a morte do nobre banqueiro, a ilha foi passando pelas mãos de outros reis insignificantes, até que em 1997 a coroa chegou à cabeça do escritor espanhol Javier Marías. Este, então, passou a distribuir títulos de duques e duquesas a gente do meio artístico. Pessoas como Pedro Almodóvar, Francis Ford Copolla, Juan Villoro, António Lobo Antunes, Alice Munro, Mario Vargas Llosa e Milan Kundera se tornaram nobres personalidades do inabitado reino. Junto com o título, cada um recebe o Prêmio Reino de Redonda, que paga um ducado a seus vencedores – valor que gira em torno de alguns poucos milhares de euros -, concedido pelo rei por meio de sua editora que leva o nome da monarquia.

Me deparei com essa improvável e, em partes, pouco confiável história ao ler "Pape Satàn Aleppe", de Umberto Eco, a quem Marías concedeu o título de "Duque da Ilha do Dia Anterior" em 2008. O volume, publicado há pouco pela Record, reúne textos até então inéditos no Brasil nos quais o autor expõe sua opinião sobre assuntos diversos. Falarei um pouco mais sobre o livro abaixo, mas o que me saltou aos olhos mesmo foi a história de Redonda.

Eco, o "Duque da Ilha do Dia Anterior".

Em um outro livro que acumulava poeira aqui na minha estante, "As Entrevistas de Paris Review", publicado pela Companhia das Letras, encontrei um longo papo entre Marías, autor de importantes livros contemporâneos, cmo "Os Enamoramentos" e "Assim Começa o Mal", e a jornalista Sarah Fay publicado em 2006. "Não faz muito tempo, descobri que Redonda se assemelha à Transilvânia na Europa, o que combina bem com uma lenda literária. É um lugar bastante rochoso, de difícil acesso. Foi usado como porto por contrabandistas, e circulavam lendas sobre terríveis monstros e fatos horripilantes na ilha", comenta o escritor sobre seu reino.

Na abertura da entrevista, Sarah mostra algumas peculiaridades da personalidade do escritor. "Javier Marías não tem computador ou telefone celular. Aluga dois apartamentos praticamente idênticos ao lado da famosa Plaza Mayor, em Madri. Num deles, a mobília é escura; no outro, móveis iguais, mas brancos". E sobre o trabalho do autor, escreve: "Marías redesenha o tempo todo a tênue linha que separa ilusão e realidade, elementos centrais de sua obra. Não apenas seus narradores não são confiáveis; nada em seus romances é".

Por conta disso, a jornalista e Marías travam uma bem-humorado diálogo:

"Como o senhor mistura muita ficção e verdade em seus romances, há quem se pergunte se a ilha não seria completamente inventada", diz ela.

"Mas existem mapas. Ela está lá", rebate o monarca.

"O senhor a viu?"

"Não, de perto, não. Jon Wynne-Tyson [que abdicou do reino a favor de Marías] viu. Mas visitar o lugar, na minha opinião, também não é muito importante".

Voltando a Eco, em "Pape Satàn Aleppe" ele comenta o título que recebeu do rei. "A história tem naturalmente um certo sabor de loucura patafísica, mas ao fim e ao cabo, tornar-se duque não é coisa que aconteça todo dia". E não é mesmo, nem de brincadeira, convenhamos.

Contra os bitolados no celular, Eco provocava trombadas na rua

A leitura de "Pape Satàn Aleppe" vale principalmente por conta de alguns grandes momentos de Eco. Por reunir dezenas textos publicados entre 2000 e 2015, é inevitável que haja repetições de ideias, mas isso fica em segundo plano quando nos deparamos, por exemplo, com o grande intelectual italiano dizendo que quando via alguém caminhando na calçada e mexendo no celular, parava deliberadamente na frente da pessoa para provocar uma trombada e constranger o outro, que se sentia automaticamente culpado por não prestar atenção em seu caminho.

A tecnologia e, especificamente, a internet estão entre os alvos favoritos de Eco, que morreu no ano passado, para falar sobre a bestialização e banalização das pessoas, dois de seus grandes temas. Nos textos o autor também discorre sobre política, educação, religião, filosofia, individualismo, privacidade e, claro, livros, seu objeto de devoção. Aliás, é nesse campo, em texto de 2001, que o italiano surpreende por sair em defesa de "Harry Potter". Andavam dizendo que os livros do bruxo continham ideias diabólicas, o que o leva a escrever:

"Se o clima é este, creio que devo entrar em campo a favor de Harry Potter. As histórias são, é claro, histórias de magos e feiticeiros e é óbvio que teriam sucesso, pois as crianças sempre gostaram de fadas, anões, dragões e bruxos e ninguém nunca pensou que a Branca de Neve fosse criação de um complô de Satanás, e se tiveram e ainda têm sucesso é porque sua autora (não sei se por cultíssimo cálculo ou prodigioso instinto) soube colocar em cena situações narrativas verdadeiramente arquetípicas", registra, comparando a história criada por J. K. Rowling, com todo o sofrimento e o crescimento de Potter, a clássicos como "Oliver Twist", de Charles Dickens, e "Os Meninos da Rua Paulo", de Ferenc Molnár.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.