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Agora retiram livros de escolas e livrarias; só espero que a arte se salve

Rodrigo Casarin

23/11/2017 11h44

A Peppa que não é a porca.

Um dia levantaram a bola de que Monteiro Lobato era racista, discussão válida e interessante. No outro dia, pediram para que seus livros fossem retirados das salas de aula. Ainda apareceu algum gênio dizendo que era sacanagem afastar os pequenos do mundo mágico de Lobato, que seria melhor apenas alterar as cenas nas quais negros, principalmente tia Anastácia, são discriminados. Desde então, instalou-se a gritaria: apedrejem o Lobato, amem o Lobato, abracem a tia Anastácia, queimem o Sítio inteiro, salvem a Emília, viva o Saci, façam pipoca do Visconde de Sabugosa…

De certa forma, aquele episódio mal resolvido ilustra muito das ameaças e censuras que estamos tendo no ambiente artístico neste ano. Problema com exposição em Porto Alegre, problema com performance em São Paulo, problema com quadro em Campo Grande, de novo problema com exposição em São Paulo, ameaça a debates novamente em Porto Alegre… Já fica até difícil lembrar de todos os casos de cabeça.

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Agora, livros infantis são retirados de livrarias (livros retirados de livrarias, repito) e de escolas por pressão de grupos que os acham impróprios, como mostra a reportagem do Bruno Molinero. Uma youtuber acusa a história da cabeluda Peppa de ser racista. A discussão gira em torno de "Peppa", de Silvana Rando, publicado em 2009. A autora se defende alegando que a proposta da obra era passar uma mensagem de aceitação das diferenças.

Perfeito, é isso que a arte tem que ser.

Uma olha para o objeto artístico e pensa uma coisa. Outra olha para o mesmo objeto e pensa outra, pronto. Conversam, discutem, concordam ou não, mas não deveria haver tentativa de silenciamento. A arte não é fechada uma única interpretação possível. E quando está em sala de aula, é mais importante saber como o professor está conduzindo aquela leitura com os alunos, fazendo a mediação, do que se apegar a uma interpretação alheia ao que se passa na escola.

A matéria também fala de um outro caso, este completamente bizarro: a Companhia das Letras teria sido notificada pelo Ministério Público após o pai de um aluno de ensino médio se queixar que em "Meia-noite e Vinte", do Daniel Galera, há uma cena de masturbação.

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Esse pai acha que o filho faz o quê durante boa parte do tempo que está em frente ao computador ou com o celular em mãos? Pais, atenção: seus filhos se masturbam! Pasmem! Mais do que isso: em muitos casos, quando estão no Ensino Médio – ou até antes -, já masturbam também colegas entre um amasso e outro e, vejam só, até transam, com felação, penetração e tudo. Não se horrorizem com uma cena do Galera que provavelmente se repete com frequência em sua própria casa. Aliás, se esse povo descobrir o que acontece em "O Ateneu", de Raul Pompeia, livro que também é trabalhado em algumas salas de aula, capaz de infartar.

A patrulha está por todos os lados. Uns querem uma arte cada vez mais inofensiva, asséptica, que possa ser lida – ou assistida – com conforto na mesa do almoço de domingo, quando vovó, vovô, filhinho, papai e mamãe se reúnem (e fingem não ter amantes e tudo mais). Outros querem uma arte que siga caminho semelhante, mas que ainda tenha uma mensagem clara que defenda suas próprias causas, praticamente um panfleto. Ou seja, não querem arte, não querem complexidade, querem historinha para boi dormir ou bandeira.

O que precisa ser feito? Não sei, só espero que a arte continue existindo em algum canto – num porão obscuro onde os pervertidos alienados possam se encontrar, talvez.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.