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Ele foi preso e acusado de golpe de Estado porque lia um livro e conversava sobre paz

Rodrigo Casarin

11/07/2017 12h35

Em junho de 2015 o angolano Luaty Beirão foi preso junto com alguns colegas. Apesar da falta de acusações formais, especulavam que planejavam um golpe contra José Eduardo dos Santos, presidente do país e líder do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que está no poder há quase 40 anos. No momento da detenção, Luaty e seus companheiros, todos ativistas dos direitos humanos, participavam de uma conferência com o tema "Filosofia Ideológica da Revolução Pacífica" e discutiam "Da Ditadura À Democracia', obra de Gene Sharp, cientista político norte-americano. Sim, em Luanda, capital da Angola, Luaty foi para a prisão porque lia um livro e conversava sobre a paz.

Essa não era a primeira vez que ele, um rapper também conhecido como Ikonoklasta e hoje renomado em seu país, tinha problemas com o braço armado do regime que comanda a nação. Em 2012 havia sido agredido com uma barra de ferro na cabeça enquanto participava de um protesto e em 2013, preso após uma manifestação em prol de dois outros defensores dos direitos humanos que estranhamente desapareceram.

A detenção por conta do livro e do diálogo pela paz, no entanto, seria a mais problemática. Sua prisão preventiva durou mais de 100 dias, o que ajuda a comprovar a arbitrariedade da ação. Quando lhe apresentaram alguma formalidade, descobriu que estava sendo acusado de bolar um golpe de Estado e planejar atos que levariam a uma rebelião. Não bastasse isso tudo, a situação ainda o forçava a ficar longe de sua filha, então com pouco mais de um ano, com quem o músico passava boa parte das horas de seus dias.

Logo que foi preso, no entanto, Luaty começou a escrever um diário que conseguiu vazar parcialmente para fora da prisão, o que chamou atenção para o drama que vivia. Quando passou cerca de um mês em greve de fome, o interesse nacional e internacional pelo que estava acontecendo com aqueles militantes angolanos se intensificou – no Brasil, inclusive, um manifesto contou com apoio de artistas como Mano Brown e Chico César. Tudo isso de alguma forma colaborou para que o rapper fosse transferido para uma prisão domiciliar e, em meados de 2016, tivesse sua anistia decretada – algo surreal para alguém que até há pouco era acusado de tramar radicalmente contra o mesmo governo que agora o anistiava.

Lucro ao viver mais um dia

"Eu continuo achando tudo o que aconteceu surreal, kafkiano, gente com tanto poder fazer isso com um grupo de jovens que pensa diferente deles. É uma estupidez. E fomos anistiados, supostamente nossa ficha está limpa. As coisas são assim, estranhas, passamos de acusados de golpe de Estado para anistiados", comenta Luaty, hoje com 35 anos, em entrevista ao blog.

O diário do artista na prisão foi transformado no livro "Sou Eu Mais Livre, Então", que chega por aqui pela Tinta da China, e a Demônio Negro lançará "Kanguei no Maiki", compilação de letras das músicas do rapper. Luaty também é um dos convidados da Flip deste ano, onde divide uma mesa na tarde do sábado, dia 29, com Maria Valéria Rezende.

Segundo o autor, a prisão ao menos serviu para chamar atenção para a corrupção que assola seu país. "Tendo em conta que em um regime como o nosso, com vários exemplos de pessoas que tentaram ser voz dissonante e acabaram mortas, quando a gente envereda por um caminho desses tem que estar preparado para o pior, que pode acontecer a qualquer hora. Estamos no 'lucro' quando nos deixam passar mais um dia vivos", diz, mostrando quão dramática é a realidade em Angola. "Nós aqui não conseguimos colocar 10 pessoas na rua sem que haja repressão e cães a morder as pessoas", comenta. "Aqui quem está no poder não deve ser respeitado, mas temido".


O perigo que é ser relevante em Angola

Para Luaty, é justamente a arte que pode ser uma das principais armas para combater o autoritarismo e o totalitarismo. "Se os artistas retratarem os maus que lhes assolam e assolam a sociedade na qual estão inseridos, a arte pode ser uma máquina demolidora, sobretudo a música, que se espalha muito rápido. A gente vê como a ditadura reage a músicos que não são superficiais e retratam a sociedade, fazem refletir. E sabemos como refletir é perigoso em uma ditadura".

No entanto, aponta que algumas frentes minguaram na Angola das últimas décadas, como é o caso da literatura, que se enfraquece cada vez mais por conta da falta de incentivo. "Ou a pessoa tem talento nato e consegue publicar fora do país ou é algo superpacífico, superinócuo. Temos poucos autores aqui dentro que são relevantes, e isso tem muito a ver com o perigo que é ser relevante no nosso país".

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.