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Jovem acompanha avós com mais de 90 anos em cruzeiro e transforma a dura experiência em HQ

Rodrigo Casarin

16/05/2017 08h05

A bucha sobrou para Lucy Knisely.

Toda a família se preocupou quando, sem consultar ninguém, Phyllis e Allen compraram passagens para fazer um cruzeiro pelo Caribe. Os dois tinham mais de 90 anos, viviam em um lar para idosos em Connecticut e já não tinham mais o vigor físico e mental de outrora – ela andava com a cabeça confusa, ele sofria de incontinência urinária, às vezes se aliviava nas próprias calças e ficava um tanto indiferente às vestes molhadas.

Para piorar, nenhum conhecido estaria naquela viagem de navio. Depois de filhos e netos conversarem um bocado sobre a situação, Lucy, então com 27 anos, se propôs a acompanhar vovô e vovó. Seria uma oportunidade de fugir do frio, esquecer do namoro que terminara há pouco, fazer pela primeira vez uma viagempelo mar e conversar e conhecer melhor aquele casal composto por uma velhinha com quem nunca se dera muito bem e um velhinho que sempre lhe paparicara ao longo da vida.

Depois do sufoco para fazer com que tudo desse certo nos voos que os levaram até o porto de onde o cruzeiro zarparia, Lucy se transforma em uma baba dos idosos dentro do navio. Se deixasse que os dois escolhessem as atividades que gostariam de fazer, ficariam sentados no quarto durante o dia inteiro, tamanha a apatia do casal. Então, cabe a ela inventar passeios pouco empolgantes, como uma voltinha pelo transatlântico, uma peça de teatro de mau gosto ou uma olhada em alguma loja – onde vendedoras tentam se aproveitar da fragilidade mental da avó para lhe empurrar todos produtos possíveis. Cabe a Lucy ainda zelar para que Phyllis e Allen se mantenham em condições dignas – de asseio, por exemplo -, acalmá-los nas constantes crises e explicar quantas vezes for necessário onde estão e como funciona a rotina em um navio.

O que ajudou Lucy, quadrinista que hoje tem 32 anos, a lidar com aquela situação foi um diário que levou consigo. Nele, seu avô relatava a vida no final da juventude, quando precisou deixar Phyllis em casa e partir para o campo de batalha na Segunda Guerra Mundial. "O livro acabou se tornando um bom companheiro durante a solidão que senti enquanto escondia meu próprio terror e sofrimento diante do declínio da saúde dos meus avós", registra a autora na introdução de "Deslocamento – Um Diário de Viagem", graphic novel que produziu relatando as experiências vividas no navio. A obra chegou há pouco no Brasil pela Nemo.

O livro é um quadrinho terno, em muitos momentos triste, que mostra a dificuldade que é, especialmente para os mais novos, saber lidar com a velhice e o quase inevitável definhamento das pessoas no final de suas vidas – isso falando de vidas longevas como no caso dos avós em questão, claro. Lucy acerta a mão ao expor seus momentos de irritação, desilusão, frustração, conflitos – principalmente com o restante da família – e arrependimento em ter resolvido acompanhar o casal naquela viagem, que, ao cabo, apesar de bastante dolorosa, acaba por lhe proporcionar ensinamentos que deverá carregar consigo até que esteja nas mesmas condições de Phyllis e Allen.

Veja algumas páginas de "Deslocamento – Um Diário de Viagem" (clique nas imagens para ampliá-las):

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.