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Dos jogos usados ao Kinect, Xbox One vive crise de identidade

Pablo Raphael

Do UOL, em São Paulo

03/06/2014 18h00

Na quarta-feira passada, 28 de maio, o CEO da Microsoft, Satya Nadella, veio a público informar que não tem planos de vender a divisão Xbox, responsável pelos consoles e games da empresa. O anúncio foi feito para acalmar o mercado, pois rumores sobre o tema circulam desde que Nadella assumiu o cargo em fevereiro.

“Eu não tenho intenção de fazer nada diferente com o Xbox do que aquilo que estamos fazendo hoje”, disse o executivo. Mas a Microsoft mesmo não parece saber o que está fazendo com o console atualmente.

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    Quando Don Mattrick apresentou o Xbox One, o console exigia conexão online constante, não rodava jogos usados e contava com várias outras restrições. Hoje, o executivo está na Zynga, produtora de "Farmville"...

O Xbox One foi apresentado ao mundo em 21 de maio de 2013. Mais de um ano depois, o console da Microsoft ainda não conseguiu firmar uma identidade bem definida, passando por mudanças frequentes de direção, o que confunde tanto os jogadores quanto os desenvolvedores e deixa o aparelho longe de ser a “primeira e única central de entretenimento” propagandeada pela fabricante.

Na época do anúncio, o Xbox One era um enigma: um centro multimídia capaz de integrar todo o entretenimento da sala de estar, inclusive a programação da TV a cabo.

“Trazer tudo isso de forma instantânea, simples e completa”, prometeu Don Mattrick, executivo que na época era responsável pelos negócios interativos da Microsoft.

Em março deste ano, o novo líder da divisão Xbox, Phil Spencer, mudou o posicionamento do produto, dizendo que “o objetivo principal é que todos entendam que Xbox é uma marca de jogos e o console será dedicado aos games em primeiro lugar”.

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    ... e Phil Spencer, que era do Microsoft Game Studios, agora comanda a divisão Xbox, prometendo "um console dedicado aos gamers em primeiro lugar"

Ou seja: sai de cena o foco no entretenimento para toda a família, entram em cena os jogadores.

Põe Kinect, tira Kinect

Na mesma ocasião, foi dito que o novo Kinect, com funções de reconhecimento de voz melhorado, exigindo menos espaço para funcionar e capaz de monitorar até os batimentos cardíacos dos usuários, era parte integral da experiência Xbox.

Tanto que uma pequena polêmica surgiu sobre possíveis invasões de privacidade envolvendo o Kinect. O periférico nunca desligaria completamente e estaria sempre observando o usuário, pronto para ligar o console a um simples comando de voz (função que até hoje não está disponível no Brasil).

Mais importante, a fabricante usava o pacote “Xbox One + Kinect” para justificar o preço elevado do console nos EUA.

“Estamos entregando valor superior a qualquer outra opção que os consumidores podem receber”, disse Don Mattrick sobre o preço US$ 100 superior ao PS4 nos EUA.

A partir de junho, porém, os consumidores poderão encontrar o Xbox One sem Kinect nas lojas. Sem o periférico, o Xbox One ficou US$ 100 mais barato (no Brasil, o preço oficial do console passou de R$ 2300 para R$ 2000).

“Estamos introduzindo uma nova opção do console Xbox One”, disse Phil Spencer. “Mas o Kinect continua sendo uma parte importante de nossa visão”.

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    Para oferecer o Xbox One por um preço mais em conta, a Microsoft cortou um dos principais diferenciais do console da caixa

Segundo a Microsoft, hoje 80% dos proprietários do Xbox One usam ativamente o Kinect. Mas, se o console vender mais sem a câmera, que desenvolvedor vai se interessar em investir tempo e dinheiro em funcionalidades que serão aproveitadas apenas por uma parcela dos usuários?

Para as produtoras, quanto mais padronizado é o console, mais fácil é desenvolver funções para os jogos. Com a premissa de que todo Xbox One vinha acompanhado pelo Kinect, havia um estímulo para incluir funções como comandos de voz ou gestos nos games, além de estúdios como a Rare (“Kinect Sports Rivals”) e a Harmonix (“Dance Central”) criarem jogos totalmente controlados através do periférico.

Jogos usados, conexão permanente...

Na E3 2013, foram confirmados alguns do maiores fantasmas que rondavam o Xbox One: a conexão obrigatória com a internet e as restrições para jogos usados.

Esta última, porém, foi exposta de forma confusa: o Xbox One rodaria jogos usados, mas para isso era preciso pagar uma taxa extra (os valores nunca foram divulgados). Ou seja, o console aceitava jogos de segunda mão, só que não.

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    "É assim que você empresta jogos no PS4", ironizou a Sony na E3 2013, mostrando executivos da empresa passando um disco da mão de um para o outro. Bem mais fácil do que a proposta original do Xbox One, não?

A reação negativa foi imediata, tanto nas redes sociais quanto na própria feira. O Xbox One virou motivo de piada para a concorrente Sony que saiu “campeã moral” da E3 ao mostrar que o PlayStation 4 não mudava em nada em relação ao uso de jogos usados no PS3.

A conexão online obrigatória soava como uma medida antipirataria um tanto autocrática (se você ficasse 24h sem se conectar, o console pararia de funcionar até a próxima conexão), mas também era responsável por várias das melhores promessas do Xbox One: processamento extra em nuvem, dispensa do disco para rodar jogos e, como foi revelado depois, na E3 2013, um apetitoso sistema de compartilhamento de jogos entre até 10 assinantes da “mesma família”.

Com problemas sérios de comunicação, a Microsoft não conseguiu convencer ninguém dos benefícios da conexão permanente ao Xbox Live. A empresa se concentrou nas restrições e obrigações do usuário e não nas vantagens que o serviço ofereceria.

A reação negativa foi tamanha que poucos dias após a feira, a Microsoft anunciou uma série de mudanças no Xbox One. O console aceitaria jogos usados e não exigiria conexão online permanente, só para começar. Em contrapartida, muito da proposta arrojada se perdeu - e perderam também os desenvolvedores.

O Xbox One não tem um hardware tão poderoso quanto o rival PS4, em especial, não tem uma memória GDDR tão boa. O resultado prático disso é que os games ficam mais bonitos no console da Sony, rodam com resolução melhor e com melhores taxas de quadros por segundo.

Hoje, parece claro que a Microsoft apostava no processamento em nuvem para compensar o hardware: uma estratégia que permitiria vender um console com peças mais baratas (e assim, ter um retorno financeiro mais rápido) sem se prejudicar na “corrida armamentista” pelos melhores jogos.

Mas sem a certeza de que o usuário estará conectado, fica difícil para o desenvolvedor apostar no processamento em nuvem. É o mesmo problema provocado pela decisão recente de vender o Xbox One sem o Kinect.

Destino: Brasil

A proposta do Xbox One integrar televisão, jogos, filmes sob demanda e outras mídias em uma só central na sala do usuário é muito bacana, em particular com as funções de segunda tela oferecidas pelo aplicativo Smart Glass.

Ao assistir uma partida das finais da NBA, você pode visualizar estatísticas de cada jogador ou a pontuação das equipes no outro jogo que está rolando. Seriados populares, como "Game of Thrones", contam com conteúdo extra que pode ser visualizado pelo aplicativo. Pena que, no Brasil, não é bem assim.

CANAL "DESTINATION BRAZIL" NÃO CHEGARÁ AO BRASIL

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Aqui, sequer a função de ligar o console com um comando de voz (ativando também os demais eletroeletrônicos ligados ao aparelho) está disponível, quanto mais conteúdo extra em séries de TV.

Um exemplo da má implementação do Xbox One como "central de entretenimento" no Brasil é o canal "Destination Brazil", criado pela MS para promover conteúdos sobre a Copa do Mundo. Desde um reality show exclusivo para assinantes até estatísticas de cada partida em tempo real, o canal oferecerá uma variedade de opções para os proprietários do Xbox One se divertirem durante o torneio... mas não estará disponível no Brasil.

Na sede da Copa do Mundo 2014, o único conteúdo disponível será o reality show "Every Street United", primeira produção do estúdio Xbox Entertainment. Mas até aí, esse conteúdo estará disponível para assinantes Live Ouro no Xbox 360 também. Ou seja, Destino Brasil, só que não.

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    Quer acompanhar as partidas da Copa pelo Xbox One, com estatísticas das partidas e redes sociais integradas? Não vai ser dessa vez, ao menos no Brasil

Mudança de direção

Desde o lançamento, o Xbox One vem ganhando recursos quase que mensalmente. Melhorias e ajustes foram feitos nos sistemas de chat e formação de grupos, que ficou, veja só, igual ao do Xbox 360, como deveria ter sido desde o início. O console ganhou suporte para ‘streaming’ de vídeo e aplicativos que exigiam o pagamento da assinatura Live Ouro, como Skype e Netflix, hoje estão disponíveis para todos.

O benefício “Games with Gold”, lançado em junho de 2013 para o Xbox 360, só chegará ao Xbox One um ano depois, em junho deste ano e com restrições: os jogos gratuitos só estarão disponíveis enquanto o jogador for assinante Live Ouro.

Ou seja, é como a Instant Game Collection do rival PlayStation Plus, só que com uma oferta mais limitada e, dado os primeiros jogos anunciados (“Halo: Spartan Assault” e “Max: The Curse of Brotherhood”) e o histórico do catálogo no Xbox 360, com ofertas de menos valor para os usuários.

Futuro em jogo

A Microsoft realizará uma conferência na próxima segunda-feira (9), na véspera da E3, principal feira de games do mundo. Um ano atrás, no mesmo palco em Los Angeles, a empresa não conseguiu se fazer entender quanto ao Xbox One. Assim, é vital para o futuro do console que uma mensagem clara seja transmitida - e seguida pela fabricante nos próximos meses.

Entre promessas de novas funções e serviços que aos poucos chegam ao console, o Xbox One ainda precisa melhorar muito para se tornar a "central de entretenimento" anunciada em 2013 ou um videogame capaz de atender as expectativas dos jogadores para esta nova geração de hardware - tarefa que o PlayStation 4 vem cumprindo com mais eficiência.