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Venda de jogos 'inacabados' ganha milhões de adeptos; entenda o fenômeno

Victor Ferreira

Do UOL, em São Paulo

22/04/2015 13h47

Após o boom dos jogos independentes, muitos desenvolvedores começaram a procurar formas de criar e financiar seus novos projetos sem a necessidade de publishers ou empresas para distribuição.

Enquanto alguns experimentaram o financiamento público via Kickstarter, outros seguiram um caminho similar ao utilizado em “Minecraft”, cobrando jogadores por uma versão em progresso do game, ajudando no desenvolvimento do jogo via testes e sugestões.

Foi com isso em mente que, em 2013, a Valve iniciou o programa Acesso Antecipado para o Steam, que encontrou sucesso com games como “DayZ”, “H1Z1” e “Kerbal Space Program”, títulos que já superaram a marca de um milhão de cópias vendidas na plataforma antes mesmo de um lançamento "oficial". Não só isso, também foi responsável pela popularização e expansão dos chamados "jogos de sobrevivência".

O programa traz uma série de vantagens e oportunidades tanto para desenvolvedores quanto para os próprios jogadores, que, em situação ideal, ajudam a criar o produto final em conjunto, testando e refinando suas mecânicas.

Por outro lado, este sistema também gerou grandes fracasssos e controvérsias, que mostram que o conceito ainda tem fragilidades preocupantes.

  • O jogo "H1Z1", da antiga Sony Online, é um dos maiores novos jogos do programa

Esforço conjunto

A proposta do Acesso Antecipado pode ser um pouco difícil de engolir para boa parte do público, já que inicialmente o jogador paga por uma versão incompleta do game, servindo como fonte de renda e “cobaias” para as diferentes mecânicas planejadas para o jogo completo.

“Eu não via com bons olhos, pensava que queriam vender algo que não era tão bom [só] para fazer dinheiro”, diz Petar Neto, 27 anos, youtuber do canal FallenTV. “Depois de algumas experiências recentes vejo o Acesso Antecipado de forma totalmente diferente: Acredito que é uma forma de alavancar um bom projeto para se tornar excelente quando for finalizado”.

Para pessoas como Petar, um dos principais atrativos de jogar um game em Acesso Antecipado é não só presenciar como participar da evolução do título, opinando e testando novas mecânicas assim que forem implementadas. É o caso, por exemplo, do sucesso mais emblemático do programa: “DayZ”.

“No Reddit os desenvolvedores e a comunidade interagem muito em relação ao que está sendo feito e o que será feito no futuro”, explica. Em “DayZ”, por exemplo, os desenvolvedores começaram com poucos zumbis, refinando a velocidade e força das criaturas conforme o retorno e opiniões dos jogadores. “Mais recentemente, na versão 0.55, eles implementaram hordas de zumbis, mexendo no metagame para diminuir o PvP e aumentar os elementos de ‘sobrevivência’”.

Às vezes, isto pode até mudar a direção do design de um jogo, como é o caso de “Rust”, jogo que começou como um game com zumbis, tal qual “DayZ”, mas que mudou seu foco para se diferenciar da competição.

“Nem sei se o jogo pode ser mais classificado como sobrevivência já que após a mudança virou apenas PvP”, opina Petar.

  • Sucesso do Acesso Antecipado, "Don't Starve" ajudou a popularizar o gênero de sobrevivência

Questão de sobrevivência

Embora o catálogo do Acesso Antecipado já tenha incluido títulos de diversos gêneros - desde RPGs como “Wasteland 2” aos simuladores “Kerbal Space Program” and “Besiege” -, o maior sucesso do programa está na ascensão dos jogos de sobrevivência, que gerou mais de 1 milhão de vendas para “DayZ” e mais recentemente “H1Z1”.

Estes jogos procuram seguir nos passos de "Minecraft", que popularizou o conceito de criação de itens e estruturas com uma experiência de sobrevivência contra inimigos. Por ser um subgênero mais eclético, é possível encontrar variados tipos de jogos assim, desde shooters com visual realista como "DayZ" (que começou a vida como um mod de "Arma II") até o mais cartunesco "Don't Starve".

Para o público destes jogos, o principal atrativo são a variedade de mecânicas diferentes implementadas (e adicionadas) em cada um deles, o que os tornam ideias para o formato do Acesso Antecipado.

"Até por 'DayZ' existir antes de 'H1Z1', acredito que serviu de modelo, e a Sony Online quis se focar em pontos 'negativos' ou 'inacabados' do outro, como veículos, por exemplo", explica Petar.

Já outros jogos tem um foco maior na sobrevivência em ambientes de condições extremas, como “The Forest”, que coloca o jogador no papel de um sobrevivente de uma queda de avião, ou “The Long Dark”, em que deve-se superar o frio e as criaturas selvagens para viver outro dia.

De certa forma, o gênero de sobrevivência tornou-se uma parte integral do Acesso Antecipado, ao ponto de jogadores como Petar não comprarem outros tipos de jogos pelo programa.

“Não vi nenhum que chamou a atenção tanto assim a ponto de adquirir para jogar, mas continuo atento para novidades”, disse.

  • Mesmo com estúdio experiente, "Spacebase DF-9" é um dos maiores fracassos do Acesso Antecipado

Riscos

Embora o programa tenha gerado sucessos e criado um público próprio, é importante notar que, assim como o Kickstarter, dar seu dinheiro para o desenvolvimento de protótipo é uma ideia bem arriscada.

A verdade é que o desenvolvimento de um jogo é um processo longo e desafiador, com uma série de problemas no caminho, o que pode fazer com que um projeto fique em fase de testes por anos. É o caso, por exemplo, de “Kerbal Space Program”, um dos primeiros jogos aceitos no Acesso Antecipado, que finalmente será lançado após 4 anos de trabalho por parte do estúdio.

Em novembro, um estudo conduzido pelo centro de pesquisa EEDAR revelou que, até aquela época, apenas 25% de todos os títulos que participaram do Acesso Antecipado chegaram a ter um lançamento oficial. Dos 9 jogos originais, disponibilizados em março de 2013, apenas três foram lançados até hoje - sendo que o quarto será o já citado "Kerbal Space Program".

Nem mesmo os grandes sucessos do programa, “DayZ” e “H1Z1”, tem uma previsão de lançamento exata - os desenvolvedores de “DayZ”, em específico, estimam que o jogo será lançado em 2016.

Isto, por sua vez, dá chance a um risco ainda maior: Projetos fracassam. Seja por malícia, incompetência, ou diversos fatores externos, não há garantias de que o jogo em que você gastou dinheiro venha a se tornar algo completo.

Um exemplo disso é “The Stomping Land”, jogo de sobrevivência com dinossauros que arrecadou US$ 114 mil no Kickstarter. O game chamou atenção ao entrar no Acesso Antecipado, mas eventualmente a equipe parou de se comunicar com os jogadores, até um dos desenvolvedores revelar que não tinha contato com seu colaborador há meses, e que parte de seu dinheiro nunca foi recebida.

Outro, talvez ainda mais problemático, seja o de “Spacebase DF-9”, desenvolvido pelo conceituado estúdio Double Fine (de “Psychonauts”). Idealizado como um simulador de estação espacial, o game teve vendas abaixo do esperado, o que impediu a implementação de diversas ideias para o jogo.

Ao invés de simplesmente cancelar o projeto, porém, a Double Fine decidiu lançar o game em estado incompleto, disponibilizando parte do código-fonte para usuários trabalharem em sua própria versão do projeto. A decisão causou a ira da comunidade, que financiou diretamente o jogo só para receber um produto patético em troca, além de causar incerteza em todo o modelo do Acesso Antecipado para certas pessoas. “Spacebase DF-9” ainda está à venda no Steam, por R$ 37.

Mesmo os jogos de mais sucesso sofrem com estes problemas: “H1Z1”, por exemplo, não tem uma reputação exemplar nas análises do Steam, que além de criticar o modelo de microtransações, reclamam de constante presença de hackers nos servidores.

Medidas de proteção

Para assegurar que este sistema não seja tomado por desenvolvedores ou jogadores oportunistas, a Valve tem implementado formas de ajudar a comunidade a reconhecer e reportar bons e maus exemplos de jogos em Acesso Antecipado.

O próprio sistema de críticas, adotado após a grande mudança de layout da plataforma digital em setembro, ajuda outros usuários a descobrir qual é o consenso em relação ao título, e porque ele recebeu esta reputação positiva ou negativa.

Não só isso, para jogos de Acesso Antecipado, as reclamações também podem servir de incentivo para os desenvolvedores corrigirem erros ou mesmo mudar a direção do projeto. De acordo com Petar - que já considera as críticas de hackers em “H1Z1” um pouco exacerbadas -, a equipe do jogo está trabalhando em formas de lidar com estes problemas.

“Recentemente o ‘H1Z1’ implementou o "report death" e o monitoramento de atividades suspeitas durante o jogo”, explica. “Assim que você morre é possível reportar e solicitar que o seu caso seja analisado”.

Para bem ou para mal, a Valve vê potencial no programa, e mesmo com alguns problemas conseguiu encontrar jogadores interessados na ideia de ver um jogo crescer e evoluir com sua ajuda.

Os riscos e incertezas envolvendo os projetos, porém, podem ser uma barreira significativa para muita gente até que mais grandes jogos sejam lançados por meio do programa, o que não deve acontecer por alguns anos.