Com fanáticos religiosos, "Far Cry 5" passeia pelo coração sombrio dos EUA
Tratando sobre liberdade, violência e extremismo religioso, “Far Cry 5” retrata ludicamente em seu enredo temas polêmicos pouco abordados em games com um clima descontraído e despretensioso - até demais.
O game se passa em Hope County, zona rural de Montana, uma região riquíssima em belas paisagens naturais. Na demo que experimentei no evento da Ubisoft em Los Angeles, a história aborda os problemas gerados por Eden’s Gate - um culto de fanáticos armados que começou a tomar conta do condado e a botar medo em seus moradores.
“Primeiro foi a comida, depois os suprimentos, e então eles logo já estavam levando pessoas também”, me diz um NPC do game logo após eu liberar uma área da posse dos radicais fervorosos. “Eles levam os outros para serem batizados à força. Ninguém nunca mais volta.”
Para continuar a viver em sua terra com o direito de ir e vir, será necessário lutar contra esse bando de devotos malucos e seus líderes insanos que usam deliberadamente da violência para conseguir o que desejam.
A sutileza na comparação entre Eden’s Gate e os conservadores norte-americanos ou religiosos não poderia vir em melhor momento.
Todos os acontecimentos cercando nosso globo atualmente - o terrorismo religioso, o radicalismo recém adotado por líderes como o presidente Trump nos EUA, a discussão cada vez mais ferrenha entre os custos da liberdade, violência e a posse de armas -, mostram que mesmo retratando estes temas de forma simplificada, lúdica e metafórica, a Ubisoft criou uma sinopse corajosa e necessária.
Para quem não se lembra do passado de “Far Cry”, o game basicamente construiu fama com cenários detalhados, alta diversidade de armas/pancadaria e… viagens a nações exóticas nas quais o mocinho branco chegava para meter bala nos vilões negros, asiáticos ou de qualquer outra etnia fora do padrão.
Desde um país africano até uma região asiática, o game nunca se esforçou para criar oponentes que fossem meramente incômodos para o típico garoto branco fã de fast-food. O quinto título da franquia talvez mostre uma mudança radical, com um roteiro recheado de inimigos que formam o estereótipo do caipira norte-americano nacionalista de cabeça dura e pensamentos retrógrados.
Sim, é verdade que o game apresenta novidades como gráficos melhorados e algumas possibilidades a mais na jogabilidade - como a opção de voar em diversos aviões ou a pesca -, mas os assuntos retratados na trama são o que realmente importa no novo game da Ubisoft.
A coisa mais louca nisso é que o desenvolvimento de “Far Cry 5” começou quando a equipe de produtores nem pensava em qualquer um desses aspectos, lá em meados de 2015.
Quando perguntei a respeito das polêmicas que o game já gerou, o roteirista (Drew Holmes) respondeu de uma forma ensaboada: “São temas que estão cada dia mais relevantes. Você não vê sempre esse tipo de conteúdo retratado, especialmente em um jogo.”
É compreensível que ele pule fora deste tipo de questão. Na verdade, não houve um grande número de pessoas que andou fazendo barulho contra o novo “Far Cry”, mas essa minoria radical é reclamona o suficiente para falar que o mundo está ficando chato com o ‘politicamente incorreto’ e não se pode fazer mais piada com nada - até que eles se tornam o assunto da crítica. Aí não pode.
Pela internet, há ainda alguns gatos pingados reclamando e fazendo abaixo-assinados para que os desenvolvedores tornem o roteiro de “Far Cry 5” menos ‘anti-americano’. Fica óbvio que após anos atirando em outros grupos raciais, os brancos se tornaram sensíveis o bastante para se chatearam com a possibilidade de que eles também podem ser os ‘caras malvados’.
Drew Holmes já trabalhou também com “BioShock Infinite”, outro game que traz em si diversos elementos críticos a respeito da sociedade norte-americana. Na entrevista que ele me deu, ele explicou que é dever também dos jogos - assim como qualquer outro tipo de arte - trazer assuntos para gerar discussões ou ao menos reflexões importantes no público.
“Para nós, se trata sobre contar uma história específica desse culto, mas alegoricamente encaixa no que vivemos atualmente. Essa mistura faz com que ‘Far Cry’ se destaque.”
'Se destaque' é quase um eufemismo perto do que o lançamento está prestes a fazer: enfrentar diretamente um público que provavelmentes antes já compôs o número de jogadores a sair por aí atirando em todo mundo em um país dos Himalaias.
É claro que aqui a crítica é completamente rasa e não necessariamente vai gerar um profundo debate na comunidade gamer. Oras, se sequer “BioShock” fazia isso, porque raios “Far Cry 5” vai querer se arriscar tanto?
Mesmo trazendo um ambiente descontraído até demais - uma dualidade que não faz muito sentido com um tema tão negativo e pesado como o abordado, mas que existe pela herança dos games antigos -, ainda acho que essa mudança na construção de vilões já estava mais do que na hora.
Seria muito fácil colocar extremistas religiosos islâmicos ou alguns malucos de qualquer região distante da grande nação americana para serem enfrentados; mas felizmente a Ubisoft teve a coragem que poucas outras empresas de games tiveram para mostrar que o perigo não necessariamente está a quilômetros de distância, em um país tropical, como é normalmente retratado na cultura pop.
Às vezes, o inimigo está ao lado e pode ser quem você menos espera. Assim como os líderes de Eden’s Gate, o inimigo pode ser branco e bem apessoado, chegar ao poder e ter muitas pessoas que o ouvem e concordam com as ideias absurdas proferidas.
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