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Além do Jogo: O impacto da indústria de "goldfarming" na economia real

GUILHERME SOLARI

Colaboração para o UOL

03/08/2011 09h33

Como itens virtuais ganham valores reais, movimentam bilhões e empregam milhares de pessoas

  • Reprodução documentário

    Alguns “fazendeiros virtuais” colhem ouro nos MMOs por sessenta horas semanais, e depois ainda jogam por diversão depois do expediente.

Um dos anúncios mais surpreendentes sobre “Diablo 3” é como o RPG de ação terá uma casa de leilões na qual itens poderão ser comercializados por dinheiro vivo. À primeira vista, pode parecer uma forma da Blizzard ganhar mais alguns trocados, porém o que chama mesmo a atenção é como talvez seja uma tentativa de controlar o lucrativo mercado de compra e venda de ouro e itens virtuais.

Proibir ou dificultar o acesso a um bem com alta demanda sempre resulta na formação de um mercado paralelo, e aparentemente as economias virtuais dos jogos online persistentes (MMOs) não são diferentes. Os itens e o ouro podem não “existir” propriamente, mas eles movimentam bilhões de dólares muito reais.

Um estudo do Banco Mundial divulgado no primeiro semestre esmiuçou o impacto na economia real de países asiáticos de práticas como “gold farming” (jogar maximizando lucros a nível industrial), “powerleveling” (contratar terceiros para subir seu personagem de nível) e o comércio de itens preciosos. Esse mercado paralelo em 2009 movimentou estimados US$ 3 bilhões e empregou 100 mil pessoas na China e até mesmo uso de trabalho escravo foi relatado.

A principal vedete do mercado é mesmo “World of Warcraft” (“WoW”), apesar da Blizzard proibir a prática, que pode levar a banimento temporário ou permanente da conta. Mesmo assim, já foram confirmadas transações de até US$ 9,5 mil por uma conta com personagens e itens de alto nível e o estudo estima que um em cada quatro jogadores de MMO adquira ouro pelo menos uma vez por ano.

  • Divulgação

    É de se perguntar se o jogador mediano conseguirá algum lucro com a casa de leilões de “Diablo 3” quando a indústria de “goldfarming” entrar em cena

Compra-se ouro

Como apontou uma matéria do “NY Times” sobre os “fazendeiros” virtuais, é curioso como a estrutura do mercado de compra e venda de ouro não difere em nada de qualquer outra indústria chinesa de exportação como brinquedos, roupas ou computadores. É tudo uma questão de converter mão de obra chinesa em produtos para o consumidor ocidental.

A China possui cerca de 300 milhões de jogadores de MMOs e acredita-se que 6 milhões passem mais de vinte horas jogando. Dizer que o gênero é uma febre por lá não é o bastante, mas a rotina dos “fazendeiros virtuais” força os limites da capacidade humana. Alguns jogam sessenta horas semanais a trabalho, e depois ainda jogam por diversão depois do expediente.

Cerca de 30% do dinheiro virtual é levantado “à mão” por jogadores humanos segundo o relatório, em torno de 50% vem de “bots” – personagens controlados por computador - e 20% de contas hackeadas. Salários variam de acordo com o preço do ouro, baseados em diversos fatores como o lançamento de expansões, campanhas das empresas para dificultar o trabalho, etc. O efeito de uma conta banida com milhares de unidades de ouro pode ser devastador, portanto o “powerleveling” – jogar na conta do cliente para subir rápido de nível - é mais seguro, já que a única conta banida é a do freguês. Existem até mesmo serviços de escolta nos quais o cliente é repetidamente acompanhado pelos dungeons mais difíceis para ficar com o equipamento de alto nível.

A rota do ouro

O estudo incluiu um exemplo típico de compra e venda de ouro virtual, usando nomes fictícios para pessoas e empresas.

David é um jogador ficcional de “World of Warcraft” (WoW) de 34 anos que mora na costa leste dos EUA. Ele joga “WoW” a meio ano e ingressou em uma guilda nos últimos meses, dividindo seu tempo entre quests e socialização. David precisa conciliar o jogo com seu emprego e tem dificuldade em acompanhar os companheiros. Ele vê anúncios de venda de ouro no chat e fica curioso. Ele busca “world of warcraft gold” no Google e entra em um dos sites, chamado “WoW Goldmining”. O jogador compra US$ 100 em ouro no site e paga pelo PayPal.

PayPal fica com 2% e envia a confirmação de pagamento ao site. O site é administrado pela empresa chinesa Gongsi, localizada em Changsa, capital da província de Hunan. As oito maiores empresas desse tipo na China tem lucros anuais estimados em US$ 10 milhões. A Gongsi tem cerca de 500 funcionários, em grande parte universitários recém-formados que buscam experiência nas áreas de administração e suporte técnico.

Trabalhadores da Gongsi fazem verificação antifraude do pedido de David e o enviam pedido para o departamento de logística da empresa, que checa o estoque de ouro virtual no servidor do comprador e constata que ele é insuficiente. Pela intranet de colaboradores da empresa, a Gongsi promete pagar US$ 68 pelo ouro a estúdios menores, que fazem a coleta de fato do ouro virtual.

O dono de um estúdio menor no interior da província chamado Ling aceita o pedido. Ling converteu há dois anos o seu cybercafé em uma “fazenda de ouro” quando percebeu que a atividade poderia ser mais lucrativa. Ele hoje emprega 10 funcionários, que trabalham em média 60 horas por semana, e a maioria ainda joga “WoW” por diversão em seu tempo livre depois do expediente. O perfil médio de um desses garimpeiros virtuais é um imigrante de 21 anos do oeste da China ganha cerca de US$ 2,7 dólares por hora, mais bônus de produtividade.

A fazenda de Ling trabalha em um sistema de parceria com outros cybercafés convertidos, formando uma espécie de, digamos, “cooperativa agrícola” para cuidar de aumentos súbitos de demanda em servidores específicos. Quando em uma das muitas contas ativas em cada servidor a quantidade de ouro é encontrada, Ling o envia para a Gongsi.

Um funcionário de atendimento ao cliente da Gongsi contata David pelo e-mail ou correio dentro do MMO. David pode tanto receber o ouro em um encontro “ao vivo” dentro do game com um funcionário da logística, ou ele recebe pelo correio do jogo.

David escolhe receber pelo correio e o pedido chega sem problemas. Pelos próximos meses, David recebe novas ofertas dentro e fora do “WoW” oferecendo descontos ou programas de powerlevelling.

Cada vez mais itens que sequer existem ganham valor real e impactam a economia real dos países. Com a casa de leilões de “Diablo 3”, a Blizzard pode tirar o intermediário do mercado e impedir que o usuário esteja mais vulnerável a fraudes. Mas se o mercado for lucrativo, o grosso da estrutura vai se manter intacta e a China e outros países asiáticos continuarão convertendo mão de obra oriental em dinheiro ocidental.